Um juiz de São Paulo provocou ondas de choque por todo o Brasil no mês passado, com uma decisão que obrigava as operadoras de telecomunicações brasileiras a bloquearem o uso da plataforma de mensagens instantâneas WhatsApp por 48 horas. Menos de 13 horas depois, outro juiz de São Paulo suspendeu a decisão, restaurando o serviço. Mas no ínterim, até 100 milhões de brasileiros sofreram uma inconveniência séria e defensores das liberdades civis de todo o mundo olharam com desalento.
Os brasileiros levam suas redes sociais muito a sério. O país conta com uma das populações de usuários de internet que mais crescem no mundo: ferramentas online como Facebook, Twitter e WhatsApp são usadas não apenas para expressar opiniões; elas são alternativas baratas para os preços exorbitantes cobrados pelos provedores de telecomunicações brasileiros. Um recente estudo no Brasil apontou que o WhatsApp era usado por 93% dos entrevistados que tinham acesso à internet.
A razão oficial para a decisão do juiz de suspender o WhatsApp era porque o Facebook, sua empresa proprietária, se recusava a cumprir os pedidos de fornecimento de informações pessoais e registros de comunicações aos promotores em uma investigação envolvendo crime organizado e tráfico de drogas. Essa não é a primeira vez que as autoridades brasileiras brigam com empresas de tecnologia. Independente da seriedade dos crimes sendo investigados, a ação do juiz foi temerária e representa uma ameaça potencial de longo prazo às liberdades dos brasileiros.
A decisão não saiu totalmente do nada. O Congresso brasileiro está considerando uma legislação que reverteria artigos cruciais do recém aprovado Marco Civil da Internet, a lei que regula o uso da internet no país aprovada em 2014. A nova proposta visa facilitar aos promotores o acesso a informações pessoais dos cidadãos sem a inconveniência de obtenção de uma ordem judicial.
Descrita pelos críticos como “o grande projeto de lei de espionagem”, ele obrigaria os brasileiros a registrarem detalhes pessoais como endereço, número de telefone e outras informações privadas quando acessassem sites na internet. Também exporia os cidadãos a possíveis processos de calúnia e difamação por comentários feitos nas redes sociais. Em um momento em que a dissensão política é vigorosa, esse projeto de lei certamente frearia o debate.
Um importante arquiteto do projeto de lei de espionagem é o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Eduardo Cunha. Cunha foi um dos principais oponentes do Marco Civil e se uniu à bancada evangélica do Congresso para derrubá-lo. Para complicar ainda mais, Cunha está sob investigação da Polícia Federal por corrupção e recebimento de propina, acusações que ele nega veementemente. Fora isso, grupos como o Centro de Tecnologia e Sociedade, um centro de pesquisa baseado na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, argumentam que a legislação proposta provavelmente é inconstitucional.
Esses esforços mais recentes para reduzir os direitos digitais dos brasileiros contrastam enormemente da reputação anterior do país como campeão da liberdade na internet. Após os escândalos em torno da coleta pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos de comunicações de cidadãos brasileiros e do grampeamento telefônico de importantes autoridades brasileiras em 2013, a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, levou a agenda de liberdade digital para o cenário global –até mesmo levantando a questão nas Nações Unidas.
Quando os legisladores brasileiros aprovaram o Marco Civil, o governo sinalizou aos seus cidadãos e à comunidade internacional que levaria a “neutralidade na rede” e a soberania digital a sério. Ele estava, na prática, declarando que os princípios democráticos de liberdade, privacidade e direitos humanos se aplicavam igualmente tanto no ciberespaço quanto no mundo físico.
Esse caráter permaneceu em 2014, quando o Brasil foi sede da NETmundial, uma conferência sobre a governança da internet. E há poucos meses, o Brasil foi sede do Fórum de Governança da internet, exibindo sua “abordagem de múltiplas partes interessadas” como modelo para outros países.
Apesar do WhatsApp ter voltado rapidamente online, o estrago foi feito. As aspirações do Brasil à liberdade na internet tinham entrado em claro conflito com os planos das autoridades de expandir o Estado de vigilância digital. E apesar do Brasil se gabar no exterior de sua internet aberta, ele está progressivamente militarizando sua cibersegurança e infraestrutura de defesa.
Considere a resposta das autoridades aos imensos protestos de rua de 2013: a Agência Brasileira de Inteligência e o comando de cibersegurança do Exército monitoraram ativamente os políticos e manifestantes civis. E o governo agora entra regularmente em choque com empresas de tecnologia como Apple e Google em torno do acesso a dados pessoais dos usuários. Todo governo lida com tensões semelhantes, mas cada um deve buscar um equilíbrio entre a proteção das liberdades civis por um lado e a possibilidade de excessos por parte do aparato de segurança do país por outro.
Tendo saído de um regime autoritário há 30 anos, os brasileiros são especialmente sensíveis a reduções de suas liberdades básicas, incluindo as digitais. As pessoas ainda se recordam, por exemplo, de como a garantia do habeas corpus foi suspensa após o golpe militar de 1964. Os políticos e juízes do Brasil devem ser mais conscientes do que a maioria do terreno escorregadio que representa a coibição de direitos fundamentais.
A decisão da Justiça do mês passado, somada a propostas retrógradas como o projeto de lei de espionagem, estabelecem um precedente perigoso. Por algum tempo, o país parecia ser uma voz progressista a favor da liberdade digital. Ninguém esperava que o Brasil se tornaria um líder em cibervigilância e censura.
(Robert Muggah é diretor de pesquisas do Instituto Igarapé, um centro de pesquisa independente com sede no Rio de Janeiro, onde Nathan B. Thompson é um pesquisador.)
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