“Vamos por um fim a esse vergonhoso ranço e câncer na nossa boca, mente e coração – a humilhação pública, o bullying virtual, a banalização e objetificação da vida humana e da mulher, em particular”.
O trecho faz parte do manifesto (veja na íntegra ao fim da página) escrito por Leonardo Lopes da Silva, poeta e autor do livro “A Língua do Pulsar”, publicado pela Chiado Editora, e ressalta a importância de fazermos uma avaliação sobre o caso Fabíola, ocorrido em Minas Gerais.
No último dia 15 de dezembro, um vídeo viralizou na web ao entregar uma jovem surpreendida pelo marido na saída do motel com um amigo da família. As imagens do flagra levantaram uma questão que ultrapassa os limites da traição.
Serve como discussão a respeito do reflexo de uma sociedade machista na qual ainda vivemos, uma vez que o caso acabou servindo de trampolim para piadinhas infames sobre a “vitima”, que não trata-se do marido traído.
“A necessidade de escrever este texto advém do mais profundo asco e frustração diante dos vários retrocessos, ou mesmo total estagnação, no campo da valorização da mulher na sociedade como um ser humano, e todos os direitos que isso garante”, ressalta.
Fabíola traiu, mas também foi traída ao ter a vida exposta sem a sua autorização. Mais que isso, ela foi vítima do autoritarismo do marido, que pode ter feito tudo de caso pensado. Isso cabe à justiça comprovar e punir de acordo com os meios legais, mas e quanto à jovem? Seu nome virou sinônimo de piada, enquanto que a expressão “ir à manicure” uma espécie de sinônimo para “ir ao motel”.
Quantas Fabíolas precisam surgir para que a mulher deixe de ser punida?
Se a rede não tem limites, os internautas parecem ter menos ainda. A web virou uma espécie de tribunal, onde a pessoa é julgada, condenada e, o que é pior, ridicularizada diante do universo virtual. No caso da Fabíola, pode-se dizer que a jovem é o mais novo alvo do bullying virtual. A partir do momento que as imagens do flagra percorreram as redes sociais, a jovem passa a sofrer violência.
“Os meios de comunicação eletrônicas acabam por nos ressecar as vistas, os corações, e o impulso de ver-se refletido na mulher humilhada e espezinhada, no bebê abandonado no lixo, no cão escaldado e abandonado, na natureza em chamas, ele torna-se cada dia mais fraco, até desaparecer”, opina.
Chamada levianamente de “vagabunda”, as chances de ter sua reputação marcada de forma negativa pelo resto da vida são imensas e, talvez, irreversíveis. Por outro lado, Léo, o rapaz com quem se envolveu, fica conhecido apenas de “traíra”.
Afinal, é de conhecimento público que em uma sociedade falso puritana como a nossa uma mulher para ser bem vista precisa se mostrar casta, enquanto que o homem deve comprovar sua virilidade para ser respeitado.
“Nem o Estado nem a sociedade como um todo parecem atentar para isso, então o resultado é mais casos de abusos contra a mulher, mais violência, mais desrespeito. E nada parece ser feito a respeito”, finaliza Leonardo.
Manifesto defende Fabíola e tantas outras mulheres humilhadas publicamente
Depois de 18 anos de registros poéticos que exaltam o feminino, Leonardo Lopes da Silva se revoltou diante do apedrejamento moral de Fabíola.
Por isso, de Moscou, o autor lançou um manifesto que enxerga o juízo dos brasileiros acerca de Fabíola como consequência da nossa falta de empatia. Com ela todos veriam um pouco de suas almas refletidas, assim como no bebê abandonado no lixo, no cão deixado e na destruição da natureza. Confira na íntegra:
“Quando levamos ao público alguém que dissemos ter amado para apedrejamento em praça pública, é legítimo dizer que houve uma real aliança entre o homem e ‘sua’ mulher?
Uma expressão máxima de amor, exprimida diante de Deus e dos homens, ou apenas a confirmação de um contrato de posse de um bem inalienável, não transferível?
O senhor da casa toma e também descarta o que não mais presta para ele. Todos nós afirmamos ter adquirido a educação e os valores religiosos e morais necessários para ir além do instinto tribalista e paternal.
Mas ainda estamos no meio da turba ruidosa, suada e disforme, no meio da tarde modorrenta em que mais uma mulher é submetida a um julgamento sumário que se passa há mais de 2000 anos.
A mulher ora leva cuspes, ora é chutada, despida, torturada. Há quem queira atear fogo nela, há quem queira mutilar a sua genitália, cortá-la, reduzi-la ao não – humano, um saco de carne apodrecida.
A mãe do mal original. No centro de toda esta comoção, o Mestre continua a escrever com o seu dedo na terra. O que será que ele escreve? De ti? De mim? Das ‘testemunhas’? Do acusador? Da humilhada? Dos fariseus e dos escarnecedores?
Quantas vezes mais Ele terá de repetir as mesmas palavras, neste eterno, enfadante e torturante ‘Feitiço do Tempo’ a que ele mesmo se submeteu por nós, para nos ensinar a amar, achar compaixão, ir além da terra e do pó, da mesquinhez e da hipocrisia? Da nossa majestade de lama, domínio de pés de barro, de princípios de cinza e churume?
Atire a primeira pedra! Porém antes, tire essa trave do seu próprio olho. Olhe para dentro de si, dentro do interior do seu sepulcro caiado. A sua essência. Parta em silêncio, em profundo silêncio.
Aterrorizado com o fato que no fundo, não somos tão diferentes daqueles bárbaros. Dos que mutilam os corpos de mulheres. Nós mutilamos também. Muito mais fundo.
Onde estão os teus acusadores, Fabíola? Ninguém te condenou? Eu também não te condeno. Vai, e não peques mais. Vamos por um fim a esse vergonhoso ranço e câncer na nossa boca, mente e coração – a humilhação pública, o bullying virtual, a banalização e objetificação da vida humana e da mulher, em particular”.
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